quinta-feira, 31 de maio de 2012

ANATOMIA DO ADEUS


Já não te amo mais” – uma lâmina machucaria menos.
Por que uma árvore cai assim, enquanto se busca um regador para alimentá-la, afaga-la, amá-la? Por que lhe recusava a sombra que, não se importava, até repartia com outros?
“Já não te amo mais” – uma gota escorrendo pelos tímpanos, vagalhões, estrondo. Onde guardar esta mentira anunciada de olhos baixados, como a esconder uma verdade guardada nas mãos aflitas? Tremiam de fato os cílios longos, os lisos ombros?
Durante o demorado hiato, nenhuma reação lhe ocorria.
Seu olhar ficou solto, varrendo o corpo da amada.
Branca, branca, branca, olhos de gata, ombros, joelhos. Amados joelhos apalpados. Ângulos de sábias pernas e língua silenciosa.
O que faltava ao momento era o recomeçar tempestuoso de um interlúdio; a sílaba tônica depois do hiato. Com que cordas; com que vogal?
Restava chorar. Urrar. Matar. Violentar. Violentar-se.
Conter-se, baixar o murro e retirar-se depois de um último olhar em derredor da sala. Nítido, o vaso arrumado com flores amarelas.
Não olharia para ela, que, de sua imagem, a saudade se encarregaria de torná-la viva sempre que não quisesse.
Já à porta, perguntou: “Por que?”
Hiato. Desta vez, seguido de um clímax agudo: “Estou grávida.”
Antes ela não abrisse mão da mentira dita de olhos baixados; antes se afligissem as mãos sobre o colo para sempre.
Voltou e deixou-se cair sobre o sofá macio.
“Você quer esta criança?”
Branca, branca, branca, mais branca ainda fez que sim, que sim, que sim.
Àquela verdade ela não podia fazer frente. Diante da condição de mulher, que sempre rejeitara, viu-se impotente: ela era mais fraca ainda que a fraqueza da mulher que concebe.
A alegria da concepção era a única coisa que não poderia oferecer à árvore.
Muda, levantou-se e apanhou a bolsa. Alisou a saia, prega por prega, e saiu. 

Todos os direitos reservados AKEMI WAKI

NAS TUAS BARBAS



ESTE TEXTO DEVE SER LIDO COM BOA VONTADE, NA PENUMBRA, EM POLTRONA CONFORTÁVEL. RECOMENDA-SE MUSICA SUAVE E WISKY ESTRANGEIRO.

“Era um amor tranqüilo, porque correspondido.
Amava aquele homem cujo corpo era o abrigo de uma dádiva fazendo parte de sua vida.
Abnegou-se à dádiva: deu-se em crédito em troca da aleluia de ir vivendo ao lado daquele homem. Recebia as noites com extrema calma e gratidão. Ao leito percebia um leve rumor das estrelas, um quase palpável silêncio apenas entrecortado pelo farfalhar das folhas lá fora. E então inebriava-se da loção de pinho misturando-se com o cheiro do homem a seu lado.
 - O perfume da loção combina tanto com você! – dizia. Os olhos brilhantes.
Riam de prazer; do prazer de estarem juntos. Amavam-se. E então ela deixava de perceber o leve silêncio das estrelas.
- Quero viver para sempre! – murmurava.”
         
INFELIZMENTE NÃO ESTAVAM EM HOLLYWOOD, RAZÃO PORQUE A ESTÓRIA CONTINUA. APROVEITE O INTERVALO PARA TOMAR UM CAFEZINHO.

“Setembro chegava e ele faria 33 anos.
Em festa, presenteou-o com um barbeador.
A primeira barba com 33 anos foi também a inauguração do presente. Animado, ele lhe disse que passasse as mãos pelo rosto liso. Riram-se da infantilidade dessa animação de dar e receber, mas logo o presente incorporou-se à rotina. Tornou-se comum ela despertar com o leve zumbido do aparelho.
Certa manhã, entretanto, o zumbido a incomodou como uma mosca dentro do ouvido. Cobriu-se aborrecida e acabou por adormecer.
Pela primeira vez deixou de tomar o café da manhã com o marido.”
        
É GANCHO, GENTE. PÕE AI UMA MÚSICA DRAMÁTICA E CONTINUE EM SINTONIA.

“Levantou-se mais tarde e, meio zonza, dirigiu-se para o banheiro. O sol já andava alto e um feixe de luz, como um holofote, clareava a pia, fazendo brilhar pequenos pontinhos pretos.
Intrigada, examinou os pontinhos. A medo, passou a ponta do dedo indicador nas bordas da pia. Examinou demoradamente e, enfim, percebeu: eram pedacinhos da barba do marido.
Quase podia tocar o ar parado: tensa, toda ela, teve, por momentos, a percepção do sem começo e sem fim.  Irremediável percepção de si mesma: um pontinho descartável do todo de uma barba que cresceria infinitamente se não fosse cortada. Era um segmento do tempo; era um pontinho preto a ocupar um espaço e um lugar.
Olhou-se no espelho.”

UMA BALEIA MERGULHA LENTAMENTE NO MAR CALMO.

“Eram noivos de riso fácil, subindo a ladeira estreita, calçada de paralelepípedos, numa tarde de domingo. O morno do ar subindo pelas pernas, umedecendo as mãos.
Com um rangido de dobradiça, uma velha abriu a janela. Tinha os olhos franzidos e guardava nas dobras do rosto uma vida franzina, toda ela debruçada na janela.
Aquela janela não existiria sem a velha.
Desde quando estaria ela na janela, espreitando a balbúrdia da rua que passava e passava enquanto a vida ficava encolhida na fissura dos olhos franzidos?
Parada, teve o impulso de perguntar: - As prímulas ficaram em botão? Onde? Abotoadas em seu colo?
Mas não teve coragem. Sua felicidade era tão grande, tão segura parecia nas mãos dadas ao noivo, que não teve coragem.

SIRENE. ATENÇÃO  SUBMARINO: EMERGIR IMEDIATAMENTE!

“Permaneceu defronte o espelho e fixou seu próprio colo. Já não tão alvo, já nem tão cheio, arfava e deixava-se percorrer por um calafrio de dúvida: aquela pobre velha, seria ela?
Como ela, a velha teria sido feliz depositando a vida nas barbas do marido, todo dia raspada e jogada e jogada?
Desatou em profundo suspiro.
Lento, imenso como um fardo de dívidas desmoronando a dádiva de estar viva ao mesmo tempo que o ser amado. Não havia arbitrariedade em sua existência: sua vida era um filme cuja estória já estava terminada. Agora ela sabia; via através das fímbrias de sua própria vida, o projetor dela mesma.
Fez a água jorrar da torneira  com abundância e limpou a pia com frenesi até que não restassem vestígios da barba: até que ouvisse o clique do projetor se desligando.” 

`A tardinha recebeu o marido que chegava do trabalho: um homem de 33 anos. E imberbe!

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MEDIDA


Olavo foi visto à tarde na piscina do Tênis Clube.
         Estava alegre. Pagou uns drinks para as gatinhas, deixou uma boa gorjeta para o barman e, lá pelas 5 da tarde, partiu em seu carrinho vermelho.
         Ás duas da manhã, na favela do cortume, descarregou cintas de balas de metralhadora em um povo inteiro.  Matou, ao todo, 37 pessoas – favelados que tinham acabado de se instalar no local, logo depois da “operação limpeza”, feita pela prefeitura.
         Olavo gargalhava quando foi preso. Suas roupas estavam chamuscadas e totalmente tintas de vermelho. À luz da lua cheia podia-se notar as suas mãos firmes, o seu olhar frio e as veias do pescoço salientes de prazer.
         Em depoimento à polícia declarou que nunca gostou de morte lenta, detesta mortos-vivo e é a favor da eutanásia. 

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O TRATOR


1.

A safada era um vulcão brabo. E sabia das coisas.
Gostosa de revirar a cabeça de qualquer gajo.
 “Alemão” pensou que o Jordão era mesmo um frouxo: marido manso lhe dava nos nervos.
O pomar estava um breu. Uma coruja piou pertinho.
Sentado há mais de meia hora no banco duro do trator, Vitor começou a inquietar-se.
Nisso, alguns estalidos e o vôo repentino da coruja.
-         Demorei, “Lemão”?
-         Nada, vambora.

Dez minutos depois estavam debaixo da ponte. Ali era seguro e a relva, macia. Maria tentou falar alguma coisa, mas Vitor, faminto, não deixou. Foi logo levantando a saia, massageando as tetas duras, enchendo a boca de Maria com a língua sinuosa.

         A mulher deu um suspiro e foi se acendendo. Uma, duas, três vezes cavalgaram-se às margens do rio.
         Ainda estavam enroscados quando, passando os dedos distraidamente pelo peito de Vitor, Maria disse que achava aquela situação muito ruim e que ia parar de encontrar-se com ele.         
-         Que besteira é essa agora?
-         O Jordão já ta sabendo. Primeiro ficou que nem cachorro molhado...
-         Cê contou pra ele?
-         ...depois virou uma fera. Foi ontem. Me agarrou e me deixou louca.
-         Foi você que contou pra ele?
-         Foi, ué. Ele nunca me deixou daquele jeito. Fiquei molinha, depois.
Vitor levantou-se abruptamente: - Sua vaca, filha duma puta!
E, mostrando o saco na cara de Maria, vociferou: - Então é isso, é só isso que você quer, não é? Pois vem cá, vem cá sua filha duma égua, que te mostro quem é que te deixa mole!
         Assustada, Maria escapou com um safanão das mãos de Vitor e, enquanto apanhava a blusa, disse:
-         Para com isso, “Lemão” , ele é meu marido. Ce sabe que não tava certo...
-         Tava certo, tava tudo certo, sim.
-         Tava não, “Lemão”.
-         Tô dizendo que tava. O Jordão é um puxa saco do patrão. Macho que é macho não puxa saco pra conseguir favor. Tava certo; merecia ser corno.
-         Ta falando do quê, “Lemão”? O Jordão tem estudo e é por isso que o “Seu” Afonso pediu...
-         Uma ova! Eu sou o capataz, não sou? E sou bão. Se o corno do teu marido não se metesse a besta, eu é que ia ser o cara pra cuidar de tudo na fazenda. E sabe o que mais? Não me admiro se ele não te ofereceu pra agradar o patrão. Eu vi como o “Seu” Afonso te olha, mulher.
Enfurecida, Maria esbofeteou Vitor sem perceber.
-         Cala a boca, seu sujo, ce tá é verde de inveja!
Maria só percebeu a burrada quando Vitor, louco de fúria, começou a surrá-la sem parar. Gritou e esperneou desesperada, pedindo por socorro, mas, àquela hora da madrugada, ninguém poderia aparecer. Então, as dores lacerantes nos seios pisoteados fizeram-na desmaiar.
Maria não ouviu as trovoadas ao longe, nem viu a chuva cair mansamente sobre a relva.
Foi uma semana de chuva fina.
Afonso regozijava-se intimamente, apesar da tristeza de Jordão com o desaparecimento da mulher: a safra desse ano ia ser muito boa.
Ano após ano, conseguiu supersafras e enriqueceu como jamais esperara.
Jordão, sempre calado, mas fiel, permaneceu com ele até a primavera.
Quando os ipês floriram, disse que ia viajar um pouco: mesmo depois de dez anos, ainda procurava por Maria.

2.

         Caminhando pela avenida, Jordão sabia que nunca fizera pouco da vida. Sempre soubera que ela, a vida, pendia como machuchus nos cipós, pródigos e de graça. Por que, então, importar-se? Tudo que todo sempre desejou foi ver com clareza – todos os dias, a vida de frente.
         Nunca houve laços, lantejoulas, coisas pelas quais, antes ou depois de Maria. E, distraidamente, contou os anos, caminhando pela avenida, tocando na pele áspera dos machuchus: pródigos ainda, mas... o que teria velado o brilho da gratuidade? O que cobrava, agora?
         Estacou defronte ao prédio alto, em vigas, vidro e concreto.
         “Imponente interferência humana”, Jordão diagnosticou mentalmente.
         Depois do mormaço das calçadas, o hall do prédio pareceu frio demais. Por isso, talvez, não esperou pelo elevador. Não tinha pressa e suas pernas sabiam caminhar. Pernas fortes, agora sabia, para aqueles degraus. Um passo sobre o outro, dobrar o joelho, esticar, dobrar.
         Sentia a vista cansada. Parou um pouco, ajeitou os óculos e recomeçou a subida. Devagar, o joelho saindo e entrando, compasso alternado.
         Resfolegava: era a nudez de Maria que galgava.
         Lindíssima de cabelos molhados, ela entrou em sua vida pela   porta do carro num dia de chuva.
-         Moço, pelo amor de Deus, é meu irmão caçula. Tá quase morto. Precisa dum médico, pelo amor de Deus, dá pro senhor levar a gente até o pronto-socorro?
Maria de olhos assustados, Maria afoita, Maria sempre viva. Maria decidida. Não esperou pela resposta; colocou o garoto deitado no banco de trás e tentava reanimá-lo. Aspirava o ar com força. Cobria a boca e o nariz do garoto com seus lábios, repetindo a operação muitas e muitas vezes. Maria dos lábios vermelhos.
-         Anda logo, moço. Pé na tábua, senão ele morre. Vamo, que é que tá esperando?
Jordão obedeceu automaticamente. Ficou feliz quando ouviu um suspiro e a lamúria do garoto no banco traseiro.
Só inteirou-se do ocorrido depois que o garoto foi atendido no pronto-socorro da Santa Casa de Misericórdia.
Rubinho – era como se chamava o garoto – havia saído para pescar com mais três garotos. Como não chegava, Maria resolvera sair à sua procura apesar da chuva forte de verão.  Encontrara Rubinho desmaiado na beira do rio. Tinha um ferimento na cabeça e estava de bruços. Com a chuva, o rio subira e, de tempos em tempos, a água lambia seu rosto. Não havia tempo a perder. Maria subira atè  a ponte para conseguir carona.
-         Foi sorte o senhor estar passando naquela hora. Não ia dar tempo de voltar até a fazenda e pedir ajuda pro “Seu” Afonso.
Maria aliviada. Maria agradecida.
Maria aos domingos.
Na soleira da porta, de pé, Jordão observava Maria e Rubinho apanhando mangas. Elas brilhavam maduras no meio da ramagem farta.
Pernas bonitas.
Sorrindo, ela achegou-se, oferecendo um fruto, o leite ainda escorrendo pelo talo verde.
-         Manga “borbon”. É gostosa.
 Jordão comeu com gosto. Depois, puxou-a pelo ombro e, apontando para Rubinho, comentou:
-         Está totalmente recuperado, não é? Um belo garoto, Maria.
-         Ta até rosado. Agora parece mais sadio do que antes.
-         É... A vida brilha mais quando enfrenta o escuro da morte.
Maria riu baixinho:
-         Ta falando que nem o Padre Francisco.
Levantou um olhar maroto e completou:
-         É ele que casa os noivos, lá na capela da casa grande.
         Maria corada. Maria dengosa. Maria de véu e grinalda.
         Maria cobiçada.
         Uma lâmina afiada machucaria menos.
O prédio era mais alto do que imaginara: a metrópole descortinava-se por inteira, com seus ratos, formigas e cupins roendo seus machuchus. Mesmo assim, não enfeitaria a morte.
         Não enfeitaria a morte – reafirmou-se Jordão, limpando os óculos – e veria a coisa em si, a trajetória de um homem o que é.
         Dirigiu-se até o beiral e lá permaneceu por muito tempo, olhando para o vazio. A noite já descia quando Jordão, como que saindo de um transe, pela primeira vez desde que precisou de óculos, sentiu-se sem eles.  Retirou os óculos e, cuidadosamente, os depositou no chão, a seus pés.
         Não precisaria mais deles: agora sabia os machuchus décor, entranhados que estavam em si. E os levaria consigo, para sempre.
        
         3.
         Afonso teve muito trabalho naquele verão.
         Vitor seu novo administrador era incompetente. Afinal, não se podia mesmo esperar muito de um ignorante como ele – pensou Afonso, dando de ombros.
         Depois do almoço, recostou-se na poltrona e acendeu um charuto. Ponderou que, de qualquer forma, não valeria a pena contratar outro profissional: era capaz de Jordão voltar, dia desses.
         Ficou observando a mulher Celina arranjar um vaso de flores. Eram rosas amarelas. Celina gostava muito de rosas.
         Sujeito estranho, o Jordão. Rico, refinado, formado em direito, viajado, dava sempre a impressão de que adivinhava pensamentos.Sabia... saberia... prever o futuro? Seria por isso que nada abalava aquela serenidade?
         Um vento, um braseiro, uma espiga de milho ou uma supersafra... Jordão parecia contabilizar numa mesma coluna de créditos. 
         Casou-se com Maria. Aquilo sempre o fez lembrar-se de Pigmalião. Como era mesmo o nome do professor celibatário? Higgins...isso mesmo, Henry Higgins. Lembrava-se que Celina tinha gostado muito do filme.
         O casamento, até era compreensível, afinal Maria era adorável e sedutora. Mas vir morar aqui, numa casinha de colono... um sujeito como ele?
         Talvez Jordão tivesse uma idéia muito diferente da perfeição feminina.
- As árvores não devem ser transplantadas. – dissera ele com aquele sorriso peculiar.
É. Talvez Jordão estivesse com a razão – ponderou Afonso, olhando para as rosas de Celina.  
         Sujeito estranho, o Jordão.
         - ...como fumaça...- murmurou, seguindo as evoluções da fumaça de seu charuto.
-         Disse alguma coisa?
         - Não, Celina. Vou andando. A fazenda já não é a mesma desde que Jordão se foi.
-         Andam dizendo coisas por aí. Afonso.
-         Coisas?
         - Sobre o Vitor. A Doralice diz que o Cícero anda preocupado. Parece que o homem anda vendo coisas, bebendo muito.
-         Preciso dar um jeito nisso. Hoje falo com o Vitor.
-         Cuidado Afonso. É um homem muito violento.
-         Tudo bem. Sei tratar com ele.
Já era de tardezinha quando Afonso conseguiu botar os olhos em Vitor: bêbado, disse ter dormido a tarde toda no celeiro.
-         É aquela desgraçada, “Seu” Afonso. Não me dá sossego.
-         Quem? A pinga, você quer dizer.
-         Verdade, “Seu” Afonso. É a Maria.
-         Maria?
-         Ela tá me perseguindo. De noite, de dia, não me dá sossego.
-         A Maria do Jordão?
-         Aquela lambisgóia...acho que vai me matar.
-  Aqui,Vitor. Vá tomar um banho e depois me procure em casa. Preciso falar com você, mas preciso que você esteja bem acordado.
         Mas Vitor não o procurou, nem mesmo depois do jantar.
         No dia seguinte, disposto a encontrá-lo para um acerto de contas final, Afonso dava a partida no motor da camionete quando Cícero chegou, gritando que haviam encontrado Vitor debaixo da ponte, morto sob as ferragens do trator.

         4.
        
O trabalho do corpo de bombeiros era lento.
Primeiro retiraram o corpo de Vitor: não era coisa para ser vista por sujeitos de estômago fraco. Mas foi quando o guindaste levantou o trator que Afonso sentiu as pernas fraquejarem: enroscado nas ferragens subiu um corpo de mulher. Rígido, parecia levitar sob a ação de um mágico, os panos da saia drapejando ao vento.
As exclamações de horror diante do corpo arroxeado e varrido de contusões escaparam quase em uníssono:
-         Maria??!!
Como se tivesse esperado apenas por aquele instante de reconhecimento, o corpo de Maria encolheu, curvou-se no ar e, guinchando em agonia, desfez-se em fumaça, precipitando-se em ossadas para dentro do rio novamente.
Encolhido de cócoras, Afonso não se deu conta do tempo que levou para recompor-se. Quando se levantou viu que o guindaste permanecia imóvel, cortando-lhe parcialmente a visão do leito caudaloso do rio.
O agrupamento de curiosos ainda permanecia em estado de choque: tudo havia se imobilizado sobre a ponte. Apenas Rex, seu cão de guarda, abanava o rabo furiosamente para espantar as vespas.
“Deus do céu, isso não pode estar acontecendo.” – fantasiou enquanto, às apalpadelas, procurava o lenço no bolso traseiro da calça.  Foi quando viu Jordão, também paralisado ao lado da porta entreaberta de seu velho carro branco.
Na verdade queria correr para perto do velho amigo, mas dirigiu-se lentamente até ele. Postou-se de lado e esperou. Até que Jordão moveu-se e colocou uma mão sobre seu ombro, pressionando levemente.
Afonso virou-se para o amigo e perguntou por perguntar:
-         Você viu?
Jordão fez que sim com a cabeça, sem desviar os olhos do guindaste.
Aos poucos, a azáfama na ponte recomeçou: as pessoas agitavam-se, num burburinho perplexo.
- Eu..., sei lá por que, sabia que você ia voltar. Estou muito feliz em te rever.
Jordão virou-se. Permaneceu em silêncio por algum tempo e, deixando aflorar aquele peculiar sorriso enigmático, declarou:
- Descobri que a ausência é como a lua nova: os machuchus não brilham, mas estão la´... sabe?

Todos os direitos reservados AKEMI WAKI

A VIZINHA


Era uma mulher divertida.
Alegre, atarracada e gorda, arrancava gargalhadas de suas vizinhas. Muitas vezes por horas, como se outros afazeres não houvesse para aquelas donas de casa súbito infantilizadas, rindo e aplaudindo a comicidade da mulher. A calçada era um circo.
Vez por outra assisti ao espetáculo gratuito; divertia-me e, nem por sombra, pude adivinhar a escuridão dos bastidores daquela mulher tão pateticamente engraçada.
A primeira rachadura na porcelana de meu sorriso estalou quando percebi uma certa crueldade na platéia. Riam sim. Aplaudiam sim. Mas era da graça, da piada e da pirueta que as mulheres gostavam. De resto, havia apenas um desrespeito, quase imoral. Porque usavam o circo, usavam a mulher engraçada para readquirir composturas: o auto-respeito delas salvaguardando-se.
A segunda rachadura aconteceu quando a mulher percebeu, em mim, os vestígios da primeira.  Olhou-me com seriedade e, por detrás das luzes alegres de seu olhar, adivinhei um profundo negrume.
O que não esperava aconteceu: como um beato procura o vigário, ela me procurou. Suas confissões foram deitando por terra meus cacos de porcelana até que não restasse, de meu sorriso, senão um rosto nu diante da nudez de uma mulher aviltada.
Penso que foi uma atroz tentativa de salvação.
O que nem eu, nem ela, podíamos entender era a fatalidade.
Compreendíamos que um ser humano pode se tornar um invertebrado para amoldar-se às caixas de presente que a vida lhe oferece. Mas, por quê?
A redenção da mulher, por não compreender, é o picadeiro do circo.
Quanto à mim, é pela misericórdia que me redimo. 

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AS FORMIGAS


Nunca me disseram que se precisa nascer duas vezes.
Quando descobri, foi um espanto. Mas ainda não sei como se nasce pela segunda vez. É verdade que isto me incomoda – ter que nascer outra vez – mas vou adiando o meu nascimento o mais que posso.
Já servi o exército: um dia o sargento me deixou nu. Punição boba por eu ter descido a escadaria pelo corrimão.
Já casei: um dia papai me deu casa, carro, futuro. O que me incomodou foi ter que arranjar uma noiva rapidamente. Punição mais boba por eu ter querido subir a escadaria pelos degraus.
Já sou pai: não há jeito de me esquecer disso. Minha mulher me diz, a toda hora, que a minha filha é milha filha também. Aliás, foi quando minha filha nasceu que me dei conta: um dia vou precisar nascer-me.
Não achei o nascimento de minha filha aquele acontecimento maravilhoso que as revistas especializadas recomendam que achemos quando ficamos pais. Não chorei; não gargalhei. Apenas emudeci: minha filha nasceu chorando.
Ora, aquilo me decepcionou: então eu lhe dou vida e ela tem o rompante de não se alegrar com a vida?
Desde então, tudo que tenho feito é mostrar-lhe o quanto a vida é boa. Não suporto vê-la chorar porque me faz lembrar da decepção que foi vê-la chorar, logo quando nascia.
Eu me acho um sujeito afortunado; não tenho ambições para além do que já possuo. A não ser o fato de eu ter que nascer de novo, nada incomoda a rotina pacífica de meus dias.
Talvez as formigas. É verdade. As formigas me incomodam às vezes.
Elas estão por toda parte. Posso mesmo dizer que elas já fazem parte da minha vida. Caminham desenvoltas pela mesa da cozinha, pelas bordas dos copos sujos, pelas manchas do carpete da sala.
Já jurei a mim mesmo que no dia em que as formigas, literalmente, tomarem de assalto a minha casa, vou intimar minha mulher a fazer a limpeza diariamente. Mas, por enquanto, vou adiando o ultimato – ou eu ou as formigas – porque acho bom adiar: enquanto se adia, nem minha mulher, nem as formigas, desconfiam de minha secreta alegria de sonhar-me livre da preguiça de minha mulher e, portanto, das formigas.
Há, é claro, o inconveniente de não se resolver o problema de ter pesadelos à noite. Hoje, por exemplo, despertei aterrorizado: sonhei que eu estava sendo devorado por milhares de formigas pretas. Enormes.
Quanto mais me devoravam, menos dor eu sentia.
Até que, de repente, descobri: o cadáver totalmente corroído pelas formigas não era o meu.
Era o de meu pai.
Só então senti uma dor no peito. Dor de enlouquecer.
E chorei, e chorei, e chorei, feito um recém-nascido.  
 
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sexta-feira, 25 de maio de 2012

ARQUIVO MORTO


                  Tinha tatuado no peito
a melancolia da despedida
como se bela a morte,
como se nublado viesse o dia,
sem pressa de novos
encontros de vida.

Agora, que os sinos tocam,
tenho me lembrado que
na perene saudade das estrelas
esqueci de explorar o mar
na pressa de reencontros.

Agora, que os sinos tocam,
vejo que o mundo se encolhe
a cada esquecimento.
No mar de sargaços,
promessas e desencontros.

Tenho me lembrado.
Vagamente,
Tenho me lembrado.

 todos os direitos reservados AKEMI WAKI

NOMEAR COISAS QUE NÃO SÃO COISAS


Nomear coisas que não são coisas
mas limbo à espera do batismo,
à espera do registro em cartório.
Fulano de tal, coisa de tal,
estão em tal situação, no lugar de tal,
esperando pela concha d’água,
aspirando pelo primeiro fôlego real.

Chamar carne a esta pele,
este olho, este bife neste prato.
A esse bafo no pêlo – um arrepio.
A este chão, a este rol,
a este dente, macerando ainda quente,
chamar carne. Que arde
por toda redondeza da criação.

Dar o nome de luz à razão
pela qual a carne está no prato
e chamar razão à faca afiada
que me transpassa em diagonal
da cabeça
                     ao coração.

Em páginas indevassadas nomear
a dor de dor, o amor de amor,
o mundo de mundo. Semear
sentidos do que posso
e me foi dado.

 todos os direitos reservados AKEMI WAKI

MEDO DE SER TRANSPARENTE


Medo de ser transparente,
isso não tenho: meu corpo
é este poema isento de frases
recolhendo
no oco da palavra
o eco das cordilheiras
de um coração estranho,
entranha de minha poesia.

Medo de não ter um jeito de ser,
Isso eu tenho: minha vida
é esse dia que clareia
lento
o mistério do princípio
mostrando-se sol a pino
maturando-se arrebol sem susto.


 todos os direitos reservados AKEMI WAKI

UM TEMENTE



Para Drummond.


Um homem temente a Deus está desempregado.
Um homem temente a Deus está desempregado.

O poema está em cio e não consigo pescar
no escuro rio da noite senão esta frase
murmurando caudalosa:
um homem temente a Deus está desempregado.
Um homem temente a Deus está desempregado.

Sem emprego, do homem temente a Deus,
que será? Do homem temente,
sem emprego, que será? Do homem,
que será? Homem de Deus,
do homem sem Deus, que será? 


 todos os direitos reservados AKEMI WAKI

NOTÍCIA


jagunço patriota cidadão
não coube na primeira página
mas um país está desarmado.

jagunço patriota cidadão
há um homem forte caminhando
um país está desarmado.

alerta vermelho na cabeça,
repleto coração, olhos cerrados
vou plantar uma roseira:
um país está desarmado. 


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DIA DE VACINAÇÃO


mulher de músculos
largou o tanque cheio
varais vazios
pra enfeitar-se bela
com xadrez enorme na blusa
flores miúdas na saia justa.

onde esconde
delicadeza tamanha
nenhuma dor
a filha lhe entrando pelos olhos
de cabelos repartidos ao meio
                           sem o mínimo desvio de amor?


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AULA DE RELIGIÃO


EVA, AO PECAR,
QUÍS SE COBRIR.

E AS GERAÇÕES
                           SE COBREM DE HIPOCRISIA.


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DIAS


Um dia muito importante
é o dia da partida.
Muito mais importante
que o dia da chegada.

A partida tem gosto de esperança.
A chegada, nem gosto tem.
Só saudades da esperança que ficou
curtida
no dia da partida.  


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GÊNESIS


Depois de longa ausência,
no corpo da casa, os móveis
Imóveis.
Na pia, o copo sem chama.
Um livro jogado na cama.

Recoloco o livro na estante.
Acendo a chama sob a chaleira
- sou deus por um instante. 

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PELAS RUAS


O nome da avenida por onde caminho
é o nome de um falecido homem.
Sobre o nome do falecido
rodam veículos, rebolam madames.

Sentados sobre o nome de um morto,
mendigos.
Asfalto comprido e tão estreito!

Fardas, casacos, salto alto,
chinelo rasteiro:
derretem-se sob as minhas vistas.
E centenas de homens
e centenas de mulheres
e centenas de pessoas caminham
nuas
dentro das artérias de um corpo morto. 


 todos os direitos reservados AKEMI WAKI

ARQUIVO MORTO


                  Tinha tatuado no peito
a melancolia da despedida
como se bela a morte,
como se nublado viesse o dia,
sem pressa de novos
encontros de vida.

Agora, que os sinos tocam,
tenho me lembrado que
na perene saudade das estrelas
esqueci de explorar o mar
na pressa de reencontros.

Agora, que os sinos tocam,
vejo que o mundo se encolhe
a cada esquecimento.
No mar de sargaços,
promessas e desencontros.

Tenho me lembrado.
Vagamente,
Tenho me lembrado.


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