quinta-feira, 31 de maio de 2012

O TRATOR


1.

A safada era um vulcão brabo. E sabia das coisas.
Gostosa de revirar a cabeça de qualquer gajo.
 “Alemão” pensou que o Jordão era mesmo um frouxo: marido manso lhe dava nos nervos.
O pomar estava um breu. Uma coruja piou pertinho.
Sentado há mais de meia hora no banco duro do trator, Vitor começou a inquietar-se.
Nisso, alguns estalidos e o vôo repentino da coruja.
-         Demorei, “Lemão”?
-         Nada, vambora.

Dez minutos depois estavam debaixo da ponte. Ali era seguro e a relva, macia. Maria tentou falar alguma coisa, mas Vitor, faminto, não deixou. Foi logo levantando a saia, massageando as tetas duras, enchendo a boca de Maria com a língua sinuosa.

         A mulher deu um suspiro e foi se acendendo. Uma, duas, três vezes cavalgaram-se às margens do rio.
         Ainda estavam enroscados quando, passando os dedos distraidamente pelo peito de Vitor, Maria disse que achava aquela situação muito ruim e que ia parar de encontrar-se com ele.         
-         Que besteira é essa agora?
-         O Jordão já ta sabendo. Primeiro ficou que nem cachorro molhado...
-         Cê contou pra ele?
-         ...depois virou uma fera. Foi ontem. Me agarrou e me deixou louca.
-         Foi você que contou pra ele?
-         Foi, ué. Ele nunca me deixou daquele jeito. Fiquei molinha, depois.
Vitor levantou-se abruptamente: - Sua vaca, filha duma puta!
E, mostrando o saco na cara de Maria, vociferou: - Então é isso, é só isso que você quer, não é? Pois vem cá, vem cá sua filha duma égua, que te mostro quem é que te deixa mole!
         Assustada, Maria escapou com um safanão das mãos de Vitor e, enquanto apanhava a blusa, disse:
-         Para com isso, “Lemão” , ele é meu marido. Ce sabe que não tava certo...
-         Tava certo, tava tudo certo, sim.
-         Tava não, “Lemão”.
-         Tô dizendo que tava. O Jordão é um puxa saco do patrão. Macho que é macho não puxa saco pra conseguir favor. Tava certo; merecia ser corno.
-         Ta falando do quê, “Lemão”? O Jordão tem estudo e é por isso que o “Seu” Afonso pediu...
-         Uma ova! Eu sou o capataz, não sou? E sou bão. Se o corno do teu marido não se metesse a besta, eu é que ia ser o cara pra cuidar de tudo na fazenda. E sabe o que mais? Não me admiro se ele não te ofereceu pra agradar o patrão. Eu vi como o “Seu” Afonso te olha, mulher.
Enfurecida, Maria esbofeteou Vitor sem perceber.
-         Cala a boca, seu sujo, ce tá é verde de inveja!
Maria só percebeu a burrada quando Vitor, louco de fúria, começou a surrá-la sem parar. Gritou e esperneou desesperada, pedindo por socorro, mas, àquela hora da madrugada, ninguém poderia aparecer. Então, as dores lacerantes nos seios pisoteados fizeram-na desmaiar.
Maria não ouviu as trovoadas ao longe, nem viu a chuva cair mansamente sobre a relva.
Foi uma semana de chuva fina.
Afonso regozijava-se intimamente, apesar da tristeza de Jordão com o desaparecimento da mulher: a safra desse ano ia ser muito boa.
Ano após ano, conseguiu supersafras e enriqueceu como jamais esperara.
Jordão, sempre calado, mas fiel, permaneceu com ele até a primavera.
Quando os ipês floriram, disse que ia viajar um pouco: mesmo depois de dez anos, ainda procurava por Maria.

2.

         Caminhando pela avenida, Jordão sabia que nunca fizera pouco da vida. Sempre soubera que ela, a vida, pendia como machuchus nos cipós, pródigos e de graça. Por que, então, importar-se? Tudo que todo sempre desejou foi ver com clareza – todos os dias, a vida de frente.
         Nunca houve laços, lantejoulas, coisas pelas quais, antes ou depois de Maria. E, distraidamente, contou os anos, caminhando pela avenida, tocando na pele áspera dos machuchus: pródigos ainda, mas... o que teria velado o brilho da gratuidade? O que cobrava, agora?
         Estacou defronte ao prédio alto, em vigas, vidro e concreto.
         “Imponente interferência humana”, Jordão diagnosticou mentalmente.
         Depois do mormaço das calçadas, o hall do prédio pareceu frio demais. Por isso, talvez, não esperou pelo elevador. Não tinha pressa e suas pernas sabiam caminhar. Pernas fortes, agora sabia, para aqueles degraus. Um passo sobre o outro, dobrar o joelho, esticar, dobrar.
         Sentia a vista cansada. Parou um pouco, ajeitou os óculos e recomeçou a subida. Devagar, o joelho saindo e entrando, compasso alternado.
         Resfolegava: era a nudez de Maria que galgava.
         Lindíssima de cabelos molhados, ela entrou em sua vida pela   porta do carro num dia de chuva.
-         Moço, pelo amor de Deus, é meu irmão caçula. Tá quase morto. Precisa dum médico, pelo amor de Deus, dá pro senhor levar a gente até o pronto-socorro?
Maria de olhos assustados, Maria afoita, Maria sempre viva. Maria decidida. Não esperou pela resposta; colocou o garoto deitado no banco de trás e tentava reanimá-lo. Aspirava o ar com força. Cobria a boca e o nariz do garoto com seus lábios, repetindo a operação muitas e muitas vezes. Maria dos lábios vermelhos.
-         Anda logo, moço. Pé na tábua, senão ele morre. Vamo, que é que tá esperando?
Jordão obedeceu automaticamente. Ficou feliz quando ouviu um suspiro e a lamúria do garoto no banco traseiro.
Só inteirou-se do ocorrido depois que o garoto foi atendido no pronto-socorro da Santa Casa de Misericórdia.
Rubinho – era como se chamava o garoto – havia saído para pescar com mais três garotos. Como não chegava, Maria resolvera sair à sua procura apesar da chuva forte de verão.  Encontrara Rubinho desmaiado na beira do rio. Tinha um ferimento na cabeça e estava de bruços. Com a chuva, o rio subira e, de tempos em tempos, a água lambia seu rosto. Não havia tempo a perder. Maria subira atè  a ponte para conseguir carona.
-         Foi sorte o senhor estar passando naquela hora. Não ia dar tempo de voltar até a fazenda e pedir ajuda pro “Seu” Afonso.
Maria aliviada. Maria agradecida.
Maria aos domingos.
Na soleira da porta, de pé, Jordão observava Maria e Rubinho apanhando mangas. Elas brilhavam maduras no meio da ramagem farta.
Pernas bonitas.
Sorrindo, ela achegou-se, oferecendo um fruto, o leite ainda escorrendo pelo talo verde.
-         Manga “borbon”. É gostosa.
 Jordão comeu com gosto. Depois, puxou-a pelo ombro e, apontando para Rubinho, comentou:
-         Está totalmente recuperado, não é? Um belo garoto, Maria.
-         Ta até rosado. Agora parece mais sadio do que antes.
-         É... A vida brilha mais quando enfrenta o escuro da morte.
Maria riu baixinho:
-         Ta falando que nem o Padre Francisco.
Levantou um olhar maroto e completou:
-         É ele que casa os noivos, lá na capela da casa grande.
         Maria corada. Maria dengosa. Maria de véu e grinalda.
         Maria cobiçada.
         Uma lâmina afiada machucaria menos.
O prédio era mais alto do que imaginara: a metrópole descortinava-se por inteira, com seus ratos, formigas e cupins roendo seus machuchus. Mesmo assim, não enfeitaria a morte.
         Não enfeitaria a morte – reafirmou-se Jordão, limpando os óculos – e veria a coisa em si, a trajetória de um homem o que é.
         Dirigiu-se até o beiral e lá permaneceu por muito tempo, olhando para o vazio. A noite já descia quando Jordão, como que saindo de um transe, pela primeira vez desde que precisou de óculos, sentiu-se sem eles.  Retirou os óculos e, cuidadosamente, os depositou no chão, a seus pés.
         Não precisaria mais deles: agora sabia os machuchus décor, entranhados que estavam em si. E os levaria consigo, para sempre.
        
         3.
         Afonso teve muito trabalho naquele verão.
         Vitor seu novo administrador era incompetente. Afinal, não se podia mesmo esperar muito de um ignorante como ele – pensou Afonso, dando de ombros.
         Depois do almoço, recostou-se na poltrona e acendeu um charuto. Ponderou que, de qualquer forma, não valeria a pena contratar outro profissional: era capaz de Jordão voltar, dia desses.
         Ficou observando a mulher Celina arranjar um vaso de flores. Eram rosas amarelas. Celina gostava muito de rosas.
         Sujeito estranho, o Jordão. Rico, refinado, formado em direito, viajado, dava sempre a impressão de que adivinhava pensamentos.Sabia... saberia... prever o futuro? Seria por isso que nada abalava aquela serenidade?
         Um vento, um braseiro, uma espiga de milho ou uma supersafra... Jordão parecia contabilizar numa mesma coluna de créditos. 
         Casou-se com Maria. Aquilo sempre o fez lembrar-se de Pigmalião. Como era mesmo o nome do professor celibatário? Higgins...isso mesmo, Henry Higgins. Lembrava-se que Celina tinha gostado muito do filme.
         O casamento, até era compreensível, afinal Maria era adorável e sedutora. Mas vir morar aqui, numa casinha de colono... um sujeito como ele?
         Talvez Jordão tivesse uma idéia muito diferente da perfeição feminina.
- As árvores não devem ser transplantadas. – dissera ele com aquele sorriso peculiar.
É. Talvez Jordão estivesse com a razão – ponderou Afonso, olhando para as rosas de Celina.  
         Sujeito estranho, o Jordão.
         - ...como fumaça...- murmurou, seguindo as evoluções da fumaça de seu charuto.
-         Disse alguma coisa?
         - Não, Celina. Vou andando. A fazenda já não é a mesma desde que Jordão se foi.
-         Andam dizendo coisas por aí. Afonso.
-         Coisas?
         - Sobre o Vitor. A Doralice diz que o Cícero anda preocupado. Parece que o homem anda vendo coisas, bebendo muito.
-         Preciso dar um jeito nisso. Hoje falo com o Vitor.
-         Cuidado Afonso. É um homem muito violento.
-         Tudo bem. Sei tratar com ele.
Já era de tardezinha quando Afonso conseguiu botar os olhos em Vitor: bêbado, disse ter dormido a tarde toda no celeiro.
-         É aquela desgraçada, “Seu” Afonso. Não me dá sossego.
-         Quem? A pinga, você quer dizer.
-         Verdade, “Seu” Afonso. É a Maria.
-         Maria?
-         Ela tá me perseguindo. De noite, de dia, não me dá sossego.
-         A Maria do Jordão?
-         Aquela lambisgóia...acho que vai me matar.
-  Aqui,Vitor. Vá tomar um banho e depois me procure em casa. Preciso falar com você, mas preciso que você esteja bem acordado.
         Mas Vitor não o procurou, nem mesmo depois do jantar.
         No dia seguinte, disposto a encontrá-lo para um acerto de contas final, Afonso dava a partida no motor da camionete quando Cícero chegou, gritando que haviam encontrado Vitor debaixo da ponte, morto sob as ferragens do trator.

         4.
        
O trabalho do corpo de bombeiros era lento.
Primeiro retiraram o corpo de Vitor: não era coisa para ser vista por sujeitos de estômago fraco. Mas foi quando o guindaste levantou o trator que Afonso sentiu as pernas fraquejarem: enroscado nas ferragens subiu um corpo de mulher. Rígido, parecia levitar sob a ação de um mágico, os panos da saia drapejando ao vento.
As exclamações de horror diante do corpo arroxeado e varrido de contusões escaparam quase em uníssono:
-         Maria??!!
Como se tivesse esperado apenas por aquele instante de reconhecimento, o corpo de Maria encolheu, curvou-se no ar e, guinchando em agonia, desfez-se em fumaça, precipitando-se em ossadas para dentro do rio novamente.
Encolhido de cócoras, Afonso não se deu conta do tempo que levou para recompor-se. Quando se levantou viu que o guindaste permanecia imóvel, cortando-lhe parcialmente a visão do leito caudaloso do rio.
O agrupamento de curiosos ainda permanecia em estado de choque: tudo havia se imobilizado sobre a ponte. Apenas Rex, seu cão de guarda, abanava o rabo furiosamente para espantar as vespas.
“Deus do céu, isso não pode estar acontecendo.” – fantasiou enquanto, às apalpadelas, procurava o lenço no bolso traseiro da calça.  Foi quando viu Jordão, também paralisado ao lado da porta entreaberta de seu velho carro branco.
Na verdade queria correr para perto do velho amigo, mas dirigiu-se lentamente até ele. Postou-se de lado e esperou. Até que Jordão moveu-se e colocou uma mão sobre seu ombro, pressionando levemente.
Afonso virou-se para o amigo e perguntou por perguntar:
-         Você viu?
Jordão fez que sim com a cabeça, sem desviar os olhos do guindaste.
Aos poucos, a azáfama na ponte recomeçou: as pessoas agitavam-se, num burburinho perplexo.
- Eu..., sei lá por que, sabia que você ia voltar. Estou muito feliz em te rever.
Jordão virou-se. Permaneceu em silêncio por algum tempo e, deixando aflorar aquele peculiar sorriso enigmático, declarou:
- Descobri que a ausência é como a lua nova: os machuchus não brilham, mas estão la´... sabe?

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