segunda-feira, 5 de novembro de 2012

ALDEIA DE ARCOZELO






AKEMI WAKI


ALDEIA DE

ARCOZELO






(Para Paschoal Carlos Magno, in memoriam.)
 





                            Toda poesia é um ato de assombro. De espanto diante da beleza do universo, de terror diante do sofrimento humano. É esta dialética - emoção diante da beleza, indignação diante da dor humana – que nutre o ato poético, elevando-o à altura de ato filosófico, subtraindo-o da mera condição de expressão sentimental. O autêntico poeta é um ser crucificado na angústia de pensar antes de ser embalado no encanto de sentir.

Franklin de Oliveira









I .



à margem

úmida estou no rio
entanto vejo
córrego de acontecimentos.



1
Na vida, só tenho uma tristeza:
não sou cientista.
Invejo-lhes o conhecimento que travaram
com nêutrons, elétrons, prótons
e outros espécimes,
que vivem no bojo de átomos.
Se fosse cientista, diria
"Prazer em conhecê-lo, Sr. Próton.",
esbarraria no menino Elétron em órbita,
aceitaria um cafezinho
e extasiada
ouviria a melodia das esferas.
De modo algum confessaria o intento
mas o que desejo mesmo é saber
quem rege esta orquestra.
Se madrugada foi mesmo inventada
pra ser escutada antes do esplendor
ou se está em mim a sinfonia
violácea mutação de cores.


Mestres, através de arautos incautos,
mandaram  dizer-me que ouviram
A melodia das espécies
a harmonia  das esferas.
E que por todos os segmentos
do infinito por eles palmilhado
havia homens  bêbados vergando-se
sob o peso do sono.

Mas que bobagem a minha pensar
que bêbados zoeiram dentro de mim
e que a tessitura do universo
alonga seus milagres ate meu ser!
Que bobagem a minha dizer
: vossas feridas,
                      meu pus e sangue.

Na vida, só tenho uma tristeza:
ser poeta.
Com fios de seda tecer incógnitas
e milagres.



2.
Por vezes, tenho um cansaço
: ser míope.

Ainda que o avanço da ótica
me dê tudo aumentado em aros,
minhas retinas cansadas esquecem-se
de inverter as imagens do mundo.
E da cidade grande
a vida
só conheço pelas fotos.
Grandes revistas mostram
pessoas e letras garrafais.
Nunca o comprimento das saias
a espessura dos saltos
:bazar de miudezas
. onde costuro minha vida.

Por ser míope,
as vezes meus passos caem
num tapete macio demais.
E encharco-me do temor úmido
de nunca enxergar
as grandes revoluções do mundo.



3.
A iminência de guerras
os golpes, os mexericos da vizinha
nunca saem do ar. Notícias,
ainda que manchetes, ecoam distantes
abafadas pelo tilintar dos talheres
e o choro da caçula esperneante
com uma espinha de peixe na goela
: a maior ocorrência do dia.
Nem todo dia Danton proferiu-se
mas nem todo dia um espinho nos fere.
Dez de agosto teria sido um dia qualquer
não fosse a fome maior naquele dia comum
: atiraram uma pedra n'água
e o homem faminto atrás de peixe
foi engolido pela primeira onda.
Grande é a fome das ondas sucessivas.
Maior e mais escura aquela
que engoliu Danton
(ainda com a pedra na mão).



4. 
Vejo vazio o ventre do universo
e o mundo órfão na tribuna. Vem
do cativeiro o poder das algemas,
o temer, o saber apontar  o réu.


Coube a mulher a ousadia do erro,
os ciclos, as rugas no ventre.
Nas ruas, plantada pedir perdão
com olhos no chão da esquina.


Ao homem, coube lavar as mãos.
Coube o cutelo, a cega
cumplicidade com os sonhos do herói.


Coube-me a miopia. Ambíguas
palavras. Permanecente certeza
de que algo se perde ante meus olhos.




5.
Por vezes recorto jornais e guardo
como quem guarda relembranças.
Espio fotos antigas e dedilho esperanças
onde ha redes e rendas tecidas por aranhas.
Lisos campos, terrenos baldios, cimento
sem fim, céu de estrelas. Por léguas
caminho. Procuro
reconhecer entre juncos a face perdida.


O que permanece, por vezes procuro
demais na rota das índias, nos lírios,
na onipresença de Cristo, nos arquivos.
: a vida implícita em tantos espelhos.


Os pássaros sempre inauguram as manhãs.
0 aroma do café com leite, os jornais,
as buzinas, os guichês, os elevadores.
:a permanência implícita
no pipilar da cidade. Se sorrio,
meus dentes são alegres.


Pelo iencantamento da memória redonda
num universo plano:
à revelia me chamo Giordano.
Giordano Bruno.


6.
Sou dessas que precisam sofrer
um acidente, de repente.
Branco e preto
num cenario de cores
viva continuo
                   trespassada
pela espada dos pelejadores.

À sombra dos mitos sobrevivo
de sonho e adivinhação
:o gigante mede 8 mil pés,
A julgar  pelo mindinho..
Já o mundo,
encolhe a cada dia
sob o silvo de bombardeios.
E ressinto-me da miopia.


7.
Ai , as coisas pequenas! Sem vê-las,
vida sovina seu brilho de sonho.
Ébrio,
como meu jeito cômodo  de cochilar
e abrir meio olho
para o brilho da lua na face da água.


Percorrer dedos por lombos de livros.
Espreitar nuvens na memória. Relâmpagos.
Folhear atlas em busca de Atlantes:
Ébrio sonho  de sobriedade.


O saber se esconde atrás do sono,
um ciclo sem bocejos. Mas temo
pelo limite e as muitas muralhas.


Por nossa brincadeira de construir








II.


além do recuo regulamentar
ficam a rua
e o quintal do planeta



1.
Gira girando planeta girassol
:globo de plástico
pousado na mesa do estudante.
Fria geografia na ponta do lápis.


Gira girando planeta girândola
:globo estático
espoca clarões poucos
nos livros de História.




2.
quase 400 anos, e ainda arde
fogueira sob os pés de Giordano
:estátua fria no Campo Dei Fiori.
Estranha arquitetura,
são de bronze os clarões do planeta
e de espelho as razões porque se apagam.


Bem mais que 400 anos e esta manhã
é a mesma de fevereiro no corpo de Bruno
ou ·de setembro em Amsterdam no ano que vem.


 Vida virando História no planeta
: tanto gira quanto soma
manhãs e tardes subtraídas ao tempo.
Estranha aritmética do cotidiano,
O que resta é lâmina fria esta manhã de domingo 
desembocando no mormaço da tarde.




3.
Domingo. Nenhuma fábrica apita.
Na cara do relógio, nenhuma agulha
:meu corpo queima. Corpos queimam
neste espaço cavado no ócio do tempo.


Há vozerios no bar da esquina
zunindo alegres dentes zumbis
abrindo boca de noite na zoeira.
Há fuligem no eixo da terra
girando noites e dias
as voltas com a própria poeira.
Há uma gosma no meio da tarde
:cospem, cospem e cospem
a vida junto com caroços
palito colarinho de chope.


Nenhuma náusea queima tanto.
Ácido é saber
que também deste lixo me sirvo
:verme bicho imagem e tudo
como os bêbados do bar.
Contudo, saber e meu único clarão
:irrompe no mormaço da tarde
ilumina a cara da esperança
- uma goiabeira rompe o asfalto!
4. 
Pé de árvore esperança
nu vens do céu: alegria
pernas pro ar. O sol nasce
invertebrado hoje. E cresce.
Raquítica tortuosa arfante
árvore invertebrada.
Entre o muro e o trânsito de passos
a tudo que cospem carrega. Em vão
de cimento, vive: na tarde quebreira
uma goiabeira
como missa matinal de domingo.
Nenhuma fábrica apita.
Mínima goiabeira repica
- sinos -
à tarde, minha manhã de domingo.
5. 
Domingo. O planeta gira com-
passo perneta:
inda ontem comia goiabas no pé
hoje fedem na fruteira ao meio dia.
Fedem como o suor do garfado
e o bafo dos que jantam bem.
Fedem como as tripas do peixe
depois da feira. Fedem
sangue de caça na pá dos tratores.
Domingo. Depois do asfalto
a planície abre-se ralada
: silêncio de tratores curvando antenas
- pavana por uma paisagem morta.
Domingo. Depois do sorvete
o reino é da criança
: tem fila no balanço mijo na areia.
Em grama não se pisa
e na floresta
quem manda é Tarzan.
6. 
Domingo. O ócio fermenta
o grito no fundo da goela
o bote da fera no meio da selva.
Domingo de pedra. O ódio fermenta
estratégias de guerra fumaças
tambores nos quartéis do planeta.
Nenhum despertador à vista
: gravatas descansam no respaldo
fomes prostituem-se à mesa.
À sombra dos mitos de Arcozelo
dormem os homens sem bravatas.
Nenhum despertador se vê
: no reino de palanques moedas pedigrees
há fragatas naufrágio encrencas
medalhas bravatas trombetas.
Até as gravatas dos homens que dormem
estão no tablado desta guerra.
(Um épico na tevê rufa tambores em surdina.)

7. 
Dentro da selva e das feras, dentro
dos tratores gravatas pedras.
Dentro do asfalto e das feras
meu coração ainda bate, selvagem.
Dentre bandeiras porteiras quartéis
e chaminés de fábrica ardendo olho
meu coração ainda canta, teimoso
: uma goiabeira cresce no olho da rua.
Hino algum canta como meu coração
nem alcança tais ermos
onde tratores e governos nem cabem
: tudo são cristais no corpo da terra
e se não quebra em cacos o coração
nem se mói a goiabeira
é que algo mais antigo existe
traçado em sonho e sopro
de antiquíssimo pai.
Dentro do sopro e da semente, dentro
do coração e dos colhões
um sonho ainda vive, goiabeira.








III.


lua nova
é como se chama
a ausência
1. 
Se uma goiabeira persiste
sei que deveria sonhar
clandestina alegria
de roubar ao zelo do Sonhador
a ramagem de seus sonhos.
Mas não. Há algo de vermelho no ar
e um mecânico gesto de formigueiro.
Há algo de escuro na goiabeira
e um falso gesto de ribalta.
Mímica de inconsciente urubu
sonhando
aéreo ataque de águia sem fome.
Sombra de grande e veloz pássaro
rastejando
por sobre campos e desertos.
Assim a goiabeira,
assim o homem.


2. 
No verde milênio
de incontidas auroras
nosso senhor
leva o nome máquina.

No escuro silêncio
de embutidas sementes
nossa ramagem
perde a inocência.

Acesos em brilho
não o da claridade
mas o do verde-azul
da ira e do medo


Assim o homem,
assim a goiabeira.



3. 
Em lugar de harpas
celestiais
o aço das farpas ouço.
E um pressentimento.
Velha,
velha árvore somos nós.
Harpa intangida,
por que caminhos circulamos?
Viciados ressequidos circulares
por onde caminhemos
a pira de Prometeu ainda arde.
Narcisos florescem. No espelho
imagem sem limites.
Vulto envolto em sonhos
assim o homem, assim a goiabeira.
4. 
Falhou o Sonhador de Arcozelo
ou falham lampejos de minha memória?
A História desfila tambores, agouros:
E nos muros da memória esconde fomes,
matadouros. No eixo das idades
corpos saboreiam corpos
bêbados bailam balés nas avenidas
formigas depenam goiabeiras.
Todo o país dorme
com as mãos no coldre
e os nervos no despertador.
Pálpebras tremem
como panos ao vento do deserto
: o medo não dorme.
Nem dorme a ira de nossos tempos.
    

5. 
Que inverno vingou a semente no equívoco,
que sombras velaram o brilho na lua cheia?
Com que violência, que respirares
impedimos a seqüência do interlúdio?

Que pincéis avermelharam o rosado,
que brins endureceram o veludo?
Seria hora de compor elegias
úmidas pranteadas
as carpideiras espargindo seus ais.
Mas é que meus ais brado
com a ira dos amorosos
sem o zelo do conquistador
nem o medo do usurpador.
Na iminência de mortes
intuída
mostrarei ambas as faces.
6. 
o gesto meu e o do crucificado
será a aleluia dos alados?
As marcas de meu rosto
nem alegre nem triste.
Esfinge, na superficie.
Nem vencida nem vencedora,
esfinge.
Nem águia nem urubu,
esfinge em vôo.
E a morte com seus esgares
espreita sentada no trono.
7. 
A este medo
este garfar rasos territórios
chamamos vida.

(onde os mistérios, larga ramagem
galhos abertos, polpa madura?)
A este encolher-se
este petrificar-se em espera
chamamos vida.
(onde a liberdade, vôo de busca
mergulhos no mar, azul claridade?)








IV.
gaiola
desvairada medição
de um pedaço do infinito

1. 
Longa é a espera na solidão de fruto
enjaulado no aspecto das raízes.
De junhos a agostos demora. E nada
no ar reverbera senão as unhas
: cavo que cavo não há tesouros.
Júbilos poucos,
um som cavo de dores sem choro.
Mas se bem procuro os veios
algo me diz que seivas existem
suspensas no desenho da semente.
Longo é o sono dos bêbados
e o êmbolo de seus olhares soltos
até dentro de mim não alcança.
Mas se bem fecho os olhos,
nada no ar opõe-se a que chame
Deus ou Sonhador
a esse mar de forças arbitrárias.
E se mais fecho os olhos
algo me diz que mamutes existem
congelados nas paredes do Himalaia.
No átrio do temp(l)o
no portal de minhas cavernas
algo me diz que a vida espera.
Nua, sobre cetins, a vida espera.



2. 
Olenka me chamaria talvez
se não me chamasse assim.
E como Olenka viveria
talvez prazeirosa e fugaz.
Etérea, marmórea. Sem perceber
os músculos da vigília.
Olenka me chamaria.
E o mundo seria menos vasto.
Meus olhos veriam menos
e os braços disputariam espaços.
Como Olenka viveria
para morrer
rente ao corpo e seus objetos.

3.
Olenka não me chamo
e o mundo é mais vasto.
Rente ao corpo e seus obj etos
a vigília é pequena
: cidadãos e generais
frente ao tablado de abjetas
conquistas. Medem músculos
e palmos de terra por números.
Sete é pouco, se debaixo,
para a eternidade entre os vivos.
Olenka precisa ter inimigos
pátrias condados para defender.
Fileiras de soldados
muitos sonhos para esquecer.
Olenka não me chamo.
Olenka porta bandeiras. Constrói
carroças e mais carroças
para filhos sem parelhas.
Olenka não me chamo.
Lúcida Olenka descabelada,
que palita os dentes da morte.



4. 
Olenka precisa nascer
e começar a morrer.
Olenka não me chamo. E clamo
e vos pergunto: a semente?
A semente foi-se
cuspida em nome dos sábados?
Viventes de Arcozelo. Goiabeira.
Vos pergunto: a semente?
A semente rolou nas águas,
fez-se imitação?
Olenka não me chamo. Reclamo
e vos pergunto: a vida?
A vida
foi abolida em nome de Deus?
Rolou entre hóstias, fez-se dor,
negociação de alma,
prefácio da morte?


5. 
Viventes de Arcozelo. Goiabeira.
E vós
que rente ao som de passos incertos
é senão um corpo e uns medos.
Viventes de Arcozelo. Goiabeira.
E vós que provais nos prazeres
o éden do autofágico saber.
A vós, sombra.
Pássaro domesticado,
esfinge sob as asas da morte.
Não falo do mar ancestral
nem da terra prenhe
há nove milhares anos.
Falo do rol de emoções
do ar e do fogo das cores.
Falo do frescor da manhã
e das cinzas ao vento
quando a paixão amaina.
Porque isso é o homem
: antes e depois da morte
o que impermanece.


6. 
Homem. Hiato. Interlúdio.
Se no escuro buscais a lua cheia
e no corpo da terra o que permanece.
Se no vão de cimento, no ardor das juras,
no furor dos aviões a jato, nas recusas,
no atordoamento dos vinhos, nestas palavras
tão palavras somente.
Se assim a procurais,
não há exatidão n-
o fio da vida. Rola neste rio
suspenso pela mão do hábil
artista de marionetes
propenso mais às palmas e confetes
que ao destino de manter o fio tenso.
Se assim a procurais,
nenhuma face é seu leste
nenhum arado sulca seus oestes.
Mas se bem fechardes os olhos, vereis
apagar-se a Imagem de nossa imagem.
E nada no ar manifesta vingança
tamanha
por precisar de nós a projetá-la.


7. 
Na semente já cresce nova semente
e não me perguntem se é o ovo
ou a galinha quem vem primeiro.
Essa matemática, que dedilha
o primeiro e o último, limita
o círculo do vôo numa reta finita.
Essa lógica cúmplice da claridade
vaza a alma, separa
o dia da noite, a vida da morte.
Comigo, o pensamento descontinua.
Desvia-se alonga-se embrenha-se.
Implode. Restam
uns pressentimentos de continuidade.
Na galinha vejo o ovo
no ovo a galinha, um galo novo,
galinhovo.
o tempo é sempre.
Deus e Diabo andam de banda
grudados pelos traseiros.









V.
não o éden. um jardim
pequeno
onde abrir minhas pétalas


1. 
Como deusa, rescendendo a jasmim,
por vezes subo às águas furtadas
e avisto o mundo. Ao longe
casarios, filhos, horizonte construído.
Deve ser assim, ser Zeus
: avistar o épico,
as horizontais, as manchas e marcas.
Mas nem só de ovos postos
e um oposto se faz a vida
: o que reverbera aqui e ali não sei
se é espelho, se é ouro ou vidraça.
Dispo-me dos jasmins e auréolas
e desço. Então
avisto a estéril goiabeira
e é como se reverberassem nela
minhas mirradas ramagens.
Magdalena antes de santa, miosótis
esquecida num canto da rotina
e ressequida
meu nome será Eva? Ainda
terei da serpente, o que muda,
refloresce?


2. 
Um inverno inteiro de espera,
agonias
e o inferno de rasgar a pele,
por que, se tenho o frescor da relva
sob meu ventre rastejante
e todo este veneno?
Há guichês no município
e moedas
pra meu dízimo de fé.
Lei nenhuma para as coisas pequenas
clandestina alegria quintal farto
mexericas goiabas mangas
infância de porres saudades
que não cabem nas fotografias.
Substantivo feminino, a vida
sovina brilhos, interjeições.
Por isso direi
- como o dicionário -
que sou organismo
: viverei minha porção.
Enquanto dure, vida,
no espanto de ser
poro pêlo planta dos pés.


3. 
domingo domingo espreguiçoso domingo.
Arcozelo boceja. a vizinhança boceja.
os cães o asfalto o capim tiririca
o sol as flores no vaso. tudo boceja
ao derredor da goiabeira.
domingo sem beiras se estende. no limbo
do corpo onde repouso, bêbados bocejam.
e o ócio de seus lábios frouxos
não decifra
a linguagem de meus nervos.
sequer adivinha o veio de lavas
ebulindo excessos entre meus pentelhos.
ainda que entre muros e relâmpagos
abram-se brechas na memória
(em espasmos de sonho e crescimento
em espaços para sementes de goiabeiras)
tenho um sexo feminino
púbis pentelhos negros
corpo sapiente
com tais luzes tais sombras.
e a vida pulsa nestas partes
e nestas
como o mesmo fragor que ondas.


4. 
Aos domingos, meu coração se atrasa:
raciocina amor
num corpo nublado de cio.
E enquanto sinos convocam
para o silêncio da comunhão,
desperta para os açúcares,
que escorrem pelas bordas do mamão.
Aos domingos, meu coração dispara:
no secreto açúcar do fruto por passar
equaciona
os segredos do tempo talhando a vinha,
exalando frutos podres nos verões.
E enquanto almas comungam
a paz prometida no pão e no vinho,
ouve, não a quietude das comunhões
mas o agudo de cães disputando ossos.
Aos domingos fico que só
: o coração descompassado batucando
mensagens, não de eucaristia
mas de dívidas e dízimos. Vergo-me:
aos domingos, o mundo pesa mais.


5. 
Não sabia tão acre e doce o gosto da solidão'
nem que fosse por todos caminhando o solitário
pêndulo do tempo.
Não sabia tão frágil a comoção
nem que me coubesse turbilhão de espelhos
retratando de todas o vento e o pêndulo.
Maria Dolores Benedita Aparecida
Rosário de nomes em contas de vida
iguais. Tão diversos
os olhos, a maçã de seus rostos,
entanto vejo a repetição dos invertebrados.
o que inscreve no tempo tais estórias
diversas como as opções do labirinto?

                                                      
6. 
Se à vida vim para os crescimentos,
os trigais repletos e maduros e curvados,
esse passo incerto entre cais e mar, que é?
É que pesa nomear-me como todas
- Eva-
e rasgar-lhes rasgando-me a nudez.
Bela nudez, como pôde vergar-nos tanto
no oficio de cobrir com rendas,
quinquilharias,
se é dela que vem o saber
se é dela que nasce a vida? ,
É que pesa acordar
e saber-se vida.


7. 
Nem só de raízes à mostra
se fazem caule e frutos
: é funda a raiz que suga
a seiva
o sonho do Sonhador.
Ser deusa. Descobrir de novo
o já sonhado
na imagem da estéril goiabeira
e na miragem de nossa nudez.
Santa Madalena:  rogai por nós,
que em poucas águas nos afogamos
esquecidas do mar,
filho de todas as águas florescidas.







VI.

cada um incomum
sozinho
no comum caminho


1. 
Traço gestual de alma que pensa
e faz
a vida não fede no submundo
nem brilha em jardins suspensos.
Arde
nuns limbos com trejeitos
de céu de inferno de cruz de espada.
E jaz
tudo sendo, um nada
côncavo.
Tela em branco, papel sem máculas
desafiando
as cores do pintor, o silêncio do poeta.


2. 
Com que cores pintaria o ínfimo
espaço entre toque e não toque,
com que palavras diria o silêncio
ambíguo entre saber e não saber
o segredo do equilíbrio?
Pergunto aos cães e falam-me: ossos.
Pergunto aos homens e falam-me: posses.
Pergunto às águias e falam-me: caças.
Pergunto ao vento e uns ecos assoviam
o agudo das disputas: vencer.
E o planeta dobra os joelhos.


3. 
Tantas cabeças na bandeja do Khan
tantas medalhas, bandeiras içadas
heróis, troféus no pódio, menções.
Tantos dentes moídos em conspiração
tantas preces, saudades dos mortos
esperas, olhos acesos, resistência.
E a face distraída do Sonhador.


4. 
O que sustenta a vida
essa intermitência de vaga-
lume piscando no vácuo?
Como as mariposas
nunca chegaremos a cortejar
luzes
e resistir ao suicídio?
Pergunto aos mares e bramem: lua.
Pergunto às nuvens e ribombam: água.
Pergunto às serras, planícies, montanhas
e gemem: semente.
Pergunto aos homens
e bradam uns ares de rei ungido.


5. 
Voar amplo, vigiar o branco.
Buscar, no recôndito, a vigília
com que cores? Que dizeres
acenderão a face do Sonhador?
Sei de lamentos. Bêbados riem,
roem meu império: coração
maior que todo império de canhões.
De iras. Formigas depenam goiabeiras
de meu quintal: coração
maior que todas as bandeiras.
Pergunto-me e sei de esperanças.
Toda manhã recomeço asas
pra geográfico vôo por mares e rios
raças e povos
construí dos do mesmo pouco
de que me constituo coto.
Sei de esperanças e peço a centelha.


6. 
Da História escapam as coisas pequenas
mazelas
reflexo de lua na face da água.
Tanto brilha a luz quanto é densa
a sombra que a sustenta: dois
que são um. Alvorecer anoitecendo.
Se, feito loba faminta, fico a uivar
e ouço uma criança chorar,
sei que chora porque uma mãe existe
com o peito cheio: centelhas
que são um. Fogo repartido.
Por isso, com a licença de Donne,
não me digam que tratores constroem.
Por isso não me digam
que a goiabeira crescendo no asfalto
é uma goiabeira crescendo no asfalto.
Asa vento vôo em pouso,
sumo semente verões em repouso,
aquele arvoredo sou eu e todos.
Parte do sonho. Viveiro,
rumor de pássaros alvoroço da manhã.


7. 
Na vasta vitrina de Arcozelo
meu coração se multiplica
: sendo arco ou sendo zelo
uma mesma faísca percorre
flechas à revelia perfeitas.
Na pasta de estudos abrigo
Hermes Homero Heráclito de Éfeso
Genghis Khan Nazareno
: tudo flui na galeria de ilustres.
Fulgor de linhagem
contido no traço de mesmo sonho.
Platão ou Aristóteles
Hegel ou Heidegger
Corinthians ou Flamengo
: tudo são pelejas.
Na banda de lá, ou de cá,
alaridos de galera
cacarejando ovos antes da postura.
Antes que postura foi ovo.
Antes que ovo,galo.
Antes que galo foi sonho
e zelo do Sonhador de Arcozelo.





VII.

nadar contra corrente
e parir: piracema.
peixes morrem in aquarius.



1. 
Sei de esperanças e tenho a centelha.
Mas se de tanta esperança não mereça
ver o ouro das coisas erigir-se
atrás do escudo de Arcozelo,
que aos menos possa
engraxar os sapatos do mundo.
E se de tanta esperança não baste
descobrir, no podre, o ciclo da semente,
que ao menos me baste
para espalhar notícias do que permanece.
Sei de esperanças e tenhoa centelha.
Mas se de tanta esperança houver lamentos,
flauta doce a pairar sobre meus sonhos,
for dado sentar-me e esperar
feito um sapo de louça,
que se apague a centelha.
E que meu peito murcho e morno seja.
Morto, como este domingo. 



2. 
Um corpo sem gozo ou dor
coisa de louça, boneca sem cor,
ah, livra-me de ser. As mazelas
de sozinha sofrer o brilho das coisas,
a brisa nas folhas, são meus bezerros.
E bebem o ouro da cisterna.
Da mais funda raiz sobe o canto,
do mais negrume nasce a razão .:
E todo meu fausto em ouro e espanto.
Deixa-me sem pétalas, perfume.
Arranca de mim a estética dos galhos, ,
o bordado das folhas. Deixa-me ràsa,
as raízes horizontais. Capim tiririca.
Mas não me tire o espanto que é viver
na flama teimosa da palavra recebida.
Verde capim tiririca
o encanto da palavra.

3. 
Palavras rondam minhas noites,
assombrosos murmúrios zumbem.
Vejo gente que não conheço
e lhes conheço a dor, o medo
com seu horror. Espanta
esse vozerio dentro do peito
como se rio de carpideiras murmurando
a dor, a dor, noites a fio,
Espanta: dentro de mim há Espanha,
búfalos da América, lagos de Titicaca.
Há Nigéria, miséria, faces da moeda.
Gente que sobe a rua, ou que desce:
Anônimos rostos do continente.
Das águas furtadas aos porões
prenho-me
mas quem reparte, quem consola
dor inútil de ter uma flor na lapela?



4. 
O quase do milímetro, tão desmedido,
na distância entre os bibelôs da cômoda,
quem reparte? Quem consola
o condomínio povoado de abismos,
solidão de fruto em ciclo de espera,
quem reparte? Tantos espaços em gerúndio
enquanto vestígio de idéia, quem consola?
Saber-me velha
em rugas desde o primeiro dia,
minhas entranhas de tanto cansaço,
alugar ao lamento dos viventes à mercê?
Devo ter arado, semeado
estirpe diversa de furiosa semente
: minhas orações trovejam
cometa
rasgando tempo e espaço.
Das águas furtadas aos porões prenho-me
mas não direi dos cacos de todo dia
em comícios no peitoril da água furtada ..
Direi de dentro do mais mar de mim
entre netunos, sereias e ostras.

5. 
Ao pé do ouvido, diz Netuno
: Siga-me, e tereis o mar.
Empunha meu cetro e mostra
os caminhos do poder. O altar
onde pedir minha brandura.'
Meus tridentes não brandirei
enquanto houver oferenda.
E rodeando pela esquerda
: Siga-me, e tereis do mar
a carne mais nobre. Retira
de minhas águas o dejeto.
Não deixe que pouse adubo.
Transfigura o podre em rosa,
camarão rosado. Meus tridentes não
brandirei contra meus arautos.
Abutres também voam, senhor.
Circular vôo.


6. 
Mavioso canto como o meu te console
em rimas e raras lantejoulas. Cante
aos audazes da marinha. O sonho, o-
mito. Mas recite canções de ninar,
o condor nos escudos, os feitos,
a ternura de Temugin antes de Khan.
Tantas vezes lustre as escamas
como as de minha cauda deslizante
e de longe, muito de longe do gentio,
diga canções de amor. Gentil acalanto.
O ouro das escamas reparta antes
que o sol se vá com as brumas da noite.
Nenhuma agonia haverá, prometo,
quando as brumas caírem sobre ti.
Nenhuma dor, ao se apagarem teus pés
das praias de próximas ondas.
Insetos também voam,
gentil sereia da morte.
E é raso seu vôo.

7. 
Nos porões do mar repouso
exilada de netunos e tubarões.
Camaleoa permaneço sobre pedras
e minha concha abro em saudades
para o ciclo da lua plena.
Se bocejo, minha concha ecoa
não o canto enganoso da sereia
mas o lamento de Arcozelo
um dia avistado das águas furtadas.
Ostra me chamem
: meus incômodos em pérolas desfio.
Na lama do mar repouso
exilada de domingos e sua gosma.
À dor nunca me acostumo
e nada me consola. Nos porões
do mar, nada reparte senão o pó
que levanto para mais ver.
Quem reparte, quem consola
senão minhas próprias raízes
muitas, que me prendem à pedra?
Ostra me chamem
: o que me rói se fará VERSO,
o avesso do UNO.



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